segunda-feira, 28 de março de 2011

A Sociedade adormecida

Parte II – A revolução de laboratório
Existe uma linha ténue que separa o mundo teórico, conceptual e ideal daquilo que é a realidade. Séculos de evolução humana permitiram muitas conquistas ao ser humano, que evoluiu de uma condição de quase escravatura na Idade Média para, supostamente, viver hoje numa era de liberdade, da expressão à imprensa, passando pelas esferas da política, religião ou até da sexualidade. Infelizmente, o peso das palavras incute ideias falaciosas que, de uma forma subtil, pervertem o real sentido de alguns conceitos que comummente entendemos como fundamentais para um exercício pleno de ser humano.
O conceito de Democracia é o primeiro quebra-cabeças com que nos deparamos. O notável político e estratega militar inglês Winston Churchill uma vez referiu que “A democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos a tempos”. Não poderia estar mais de acordo com estas palavras. Comparativamente aos regimes autoritários, totalitários ou teocráticos que marcaram negativamente o século passado, fossem eles de esquerda ou de direita, a democracia é e continuará a ser o mais justo dos regimes porém, numa óptica em que todas as outras formas de regime político são fracas.
Apesar dos primeiros passos dados na Grécia Antiga, é com os iluministas do século XVIII que surgem as bases para aquilo que entendemos como democracia moderna. Sintetizando, a democracia é uma forma de organização política na qual existe um contrato social entre todos os Homens, contrato esse que legitima um centro de poder que deve responder perante os seus subordinados, o povo. Paralelamente a esta ideia, novas premissas como a separação de poderes, a igualdade perante a lei, o direito à propriedade privada e as liberdades ditas fundamentais emergiram de mãos dadas com a materialização das ideias iluministas, a Revolução Americana e, mais tarde, a Revolução Francesa que curiosamente foi rapidamente subvertida pelos ímpetos imperialistas de Napoleão Bonaparte.
Avancemos dois séculos. O modelo democrático, fruto de várias adaptações desde as ideias de John Locke ou Rousseau, triunfou na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria (ou será que foi o modelo socialista a fracassar?). Com o fim da Guerra Fria, muitos afirmaram que a democracia tinha triunfado, outros, como o académico Francis Fukuyama afirmaram categoricamente que as ideologias tinham chegado ao fim, estávamos perante o “Fim da História e o Último Homem”. O Homem (ocidental) podia respirar de alívio! Uma nova era de entendimento, progresso e paz tinha chegado sob a égide da democracia. Em 1974, a “novidade” chega a Portugal, envolta numa nuvem de inúmeras incógnitas de difícil explicação.
O momento em que Portugal se solta das amarras do Estado Novo é a primeira das incógnitas, o início do novelo. O 25 de Abril é um importante momento histórico que se apresenta habitualmente como um épico em que bravos oficiais de baixa patente, revoltados com a ditadura e sobretudo com a Guerra Colonial decidem depor o regime liderado então por Marcello Caetano. Os livros escolares e os filmes alusivos a este momento retratam-no do ponto de vista heróico e romântico mas poucos são aqueles que têm a coragem de mostrar o que realmente esta por trás da Revolução dos Cravos. Menos ainda aquelas que o conhecem. A começar por quem permitiu que a revolução acontecesse.
Por altura da revolução, Portugal fazia já parte da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Ora a OTAN (ou NATO) é uma estrutura militar internacional cujos membros estão protegidos pela própria organização. Em caso de uma agressão militar interna ou externa a qualquer um dos membros, tal ataque é considerado como um ataque a toda a estrutura. Posto isto, e independentemente do regime repressivo praticado na altura por Lisboa, é muito difícil de entender porque é que a frota naval da OTAN, estacionada no Tejo no dia 25 de Abril de 1974, nada fez para defender o regime em vigor. Alguns poderão afirmar que a liderança da OTAN decidiu assim penalizar a ditadura portuguesa. Mas, se assim fosse, porque não tiraram também o tapete ao General Franco que só cairia com a sua morte em 1975? Ou porque é que países com regimes sombrios como o Cazaquistão, Uzbequistão ou a Bielorrússia possuem estatuto de parceiros estratégicos da OTAN? Ah! O maravilhoso e hipócrita establishment ocidental.
Quem conhece a história oficial do 25 de Abril é familiar com o facto dos capitães se terem deparado com um entrave quando foram buscar Marcello Caetano para o exílio. O então chefe do governo luso recusou-se terminantemente a encetar negociações com oficiais de baixa patente e, sem saídas à vista, os bravos capitães viram-se forçados a recorrer a António Spínola, destacado fascista que recebeu a rendição das mãos de Marcello e se tornou no primeiro Presidente da República no período pós-revolução. Até aqui nada de novo. O que muitos ignoram, mas que está bem patente no Centro de Documentação de Abril da Universidade de Coimbra, bem como nos trabalhos de Luis M. Gonzaléz-Mata, Frederico Duarte Carvalho ou Andrei Grachev, foi que entre 19 e 21 de Abril de 74, a menos de uma semana da revolução, o administrador da Lisnave Thorsten Anderson se reuniu com o então Secretário-Geral da OTAN, Joseph Luns, para lhe entregar uma mensagem de Spínola na qual o general português pedia a não-intervenção da frota da OTAN estacionada no Tejo. Como muitas pessoas ainda pensam, Spínola não “caiu de pára-quedas” no epicentro da revolução. A título de curiosidade, esta reunião teve lugar no encontro anual do Clube Bilderberg.
Estes factos deixam-me perplexo. Afinal, quem forjou a democracia portuguesa? O que motivou a OTAN a virar as costas ao regime português em vigor que tão útil fora no passado? Quem toma este tipo de decisões e com que interesses geopolíticos? Mas, no meio de tantas perguntas, o que mais me perturba é a certeza de que a democracia portuguesa não é o resultado de movimentações heróicas e patrióticas, movimentações essas que existiram e desempenharam o seu importante papel, mas antes de alinhamentos políticos internacionais com pouco interesse pela liberdade dos portugueses.
“Se começássemos a dizer claramente que a democracia é uma piada, um engano, uma fachada, uma falácia e uma mentira, talvez nos pudéssemos entender melhor.”
José Saramago

Cumprimentos,
João Mendes

4 comentários:

  1. Caro Amigo

    Parabéns pelo excelente Texto. Expões uma parte da nossa historia que muitos Portugueses não sabem, é normal que os cidadãos não conhecem muitos dos movimentos diplomáticos do seu estado. Porque é disso que estamos a falar, diplomacia!
    Já tivemos oportunidade de abordar este tema, numa das nossas tertúlias. Parece-me pertinente explicar aos nossos leitores o que é o Clube Bilderberg, para que possam enquadrar melhor a tua reflexão!
    Como sabes não partilho a tua opinião,porque eu vejo o 25 de Abril como um Acto Heróico e Romântico. Uma revolução em que nas armas entram cravos em vez de saírem balas!! Uma revolução onde o povo saiu a rua para acarinhar a revolução, para acarinhar os soldados.
    Um Regime onde os mais altas patentes do estado, o Cardeal cerejeira dizia" Que os pobres têm que ser humildes como a terra que trabalham, e para serem humildes têm que passar fome", onde o Primeiro-Ministro mandava matar, torturar, a seu belo prazer.
    Posso posso não achar heróico uma revolução que põem termo a este regime. É certo que existia um grande mau estar dentro das forças armadas, mas muitos homens estavam lá pela revolução. Muitos estavam lá pelo povo, como sempre existem sempre os espertalhões que querem tirar proveito...

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  2. Caro amigo Neira,

    Muito obrigado pelas tuas palavras e pelo teu comentário.

    O 25 de Abril não perde a sua compenente romântica e heróica devido ao que descrevo no texto. Essas componentes mantêm-se lá e todos os anos de luta de resistência anti-fascista tiveram a sua importância no precipitar dos acontecimentos. No entanto, existem inúmeras provas a apontar para as variáveis externas que conduziram os acontecimentos. Ambos sabemos que se as tropas da OTAN/NATO quisessem abater os revoltosos tê-lo-iam feito de forma rápida e fácil. Não podes desconsiderar o facto de que forças externas à revolução e às aspirações legítimas de liberdade e progresso tiverem um papel fundamental nos bastidores, papel esse que permitiu a não-derramamento de sangue que referes e a queda do regime. A revolução teria acontecido na mesma? Possivelmente. Mas convenhamos que a forma como foi "cozinhada" acelerou e facilitou o processo. E Spínola acaba por ser mais central em toda a trama do que o Capitão Salgueiro Maia que, não obstante ter sido um herói (e uma referência pessoal para mim), foi apenas um peão, nada mais.

    Aceito, contudo, a tua visão do acontecimento. Não obstante insisto que o único heroísmo está nas pessoas que se associaram a este movimento por convicção porque a revolução em si (é a isso que me refiro), foi uma jogada geopolítica em que interesses muito acima da esfera portuguesa estavam em jogo...

    A terceira parte irá focar a realidade das sociedades secretas com destaque para o Clube Bilderberg.

    Um abraço

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  3. Boa Noite

    Com este teu comentário percebo melhor a tua reflexão! A meu ver completa o teu texto.Para mim é óbvio que o Pais não ia ficar nas mãos do Povo(Mesmo eu repudiando veemente o Spínola) teria que existir um governo transitário. É também parece-me claro que fez a revolução teve que cautelar a não agressão da OTAN. Tu tens razão, do pouco que eu sei do nosso passado recente. Existiram estas e muitas outras, jogadas de bastidores, para levar a bom porto a revolução. Todos os dias se passam jogadas, que não estão a dispor do comum dos mortais. O importante quanto a mim, é o que saem dessas reuniões privadas. Um ultimo ponto, Salgueiro Maia é uma das minhas maiores referencias enquanto Homem, como democrata. Ele foi um peão porque quis ser um peão. Varias vezes foi convidado para integrar os sucessivos governos do PREC, e numa aceitou. Ele é dos Homens que da cor ao 25 de Abril, fez a revolução pelo povo, para o povo..
    O filme Capitães de Abril de Maria de Medeiros é um obra sem paralelo em Portugal.
    Aqui fica o link de um trecho onde Salgueiro Maia se mostra disponível para morrer pela causa, mas mãos do Brigadeiro Pais.

    http://www.youtube.com/watch?v=kHmd2avz2iU

    Abraço

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  4. Camarada Neira,

    Como te disse anteriormente, admiro o Salgueiro Maia e considero-o uma referência para mim. Concordo contigo que ele poderia ter ascendido politicamente e não o fez por ser um homem de convicções e dai a minha admiração (ainda bem que não se meteu no PREC).

    É evidente que em todo o que é diplomacia e sinergias políticas existem sempre jogadas de bastidores. A questão é que o 25 de Abril é vendido como um movimento popular/militar baixa patente que teve sempre o controle das operações e objectivos bem definidos. Mas a realidade fala-nos de muito mais que isso, apresenta-nos a realidade heróica do 25 de Abril como uma simples etapa de um processo mais complexo com objectivos muito mais "elevados" que a liberdade dos portugueses. Para tal aconselho-te a dares uma espreitadela à brilhante obra de jornalismo de invsetigação de Frederico Duarte Carvalho, com destaque para a obra "Estado de Segredos". Pelo que conheço do Daniel Neira, este livro assenta-te como uma luva!

    abraço

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